República Cleptocrática do Brasil

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 25 de maio de 2017.

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Tempos atrás eu legendei um documentário do Netflix que falava sobre a mentira. O tema principal era a predisposição humana a mentir e os fatores e ferramentas à disposição da sociedade para refrear esse comportamento nocivo. O documentário, (Dis)Honesty: The Truth About Lies, apresenta diversas histórias de pessoas que, num determinado momento de suas vidas, resolveram optar pela mentira, e posteriormente tiveram de sofrer suas consequências. Todos os casos se deram nos Estados Unidos.

Desde uma mãe que mente sobre seu endereço na matrícula escolar de sua filha e vai presa por adulterar um registro público até o juiz da NBA que é preso pelo FBI por fornecer informações confidenciais para apostadores, o que se vê em cada história é o duro enfrentamento das consequências da mentira, principalmente quando ela configura crime. Em todos os casos, o resultado é unânime: após punidos rigorosamente, os mentirosos se declaram arrependidos e dispostos a nunca mais repetir o erro.

Quando a imprensa noticiou o acordo de delação feito pelos irmãos Joesley e Wesley, não pude deixar de pensar que nosso país é, de fato, uma piada; uma piada imoral e de mau gosto. A leniência com os criminosos – desde traficantes e assassinos até políticos e empresários corruptos – tornou-se o padrão de conduta do sistema judiciário brasileiro, catapultando nossos índices de criminalidade e os escândalos de corrupção para patamares inéditos na história mundial moderna. Quando dizem que o Brasil se tornou uma cleptocracia, não há exagero.

Qual é a mensagem que o povo brasileiro recebeu quando da divulgação das condições do acordo com os donos da JBS? Qual criminoso, neste lado da galáxia em que vivemos, conseguiu a façanha de sair ileso, mudar para Nova York, manter a quase totalidade de sua riqueza e continuar a tocar seus negócios mesmo depois de ter confessado subornar todos os agentes políticos e governamentais que cruzaram o seu caminho? As respostas são fáceis. À primeira pergunta: no Brasil, o crime compensa, sempre. À segunda: nenhum.

Somos uma nação moribunda, onde os vícios se tornaram virtude e as virtudes foram soterradas sob uma montanha de crimes. Estamos doentes em todos os níveis. Recentemente, uma família de conhecidos teve o infortúnio de ver o filho preso por tráfico de drogas. Ao chegarem à delegacia, o delegado já os esperava com uma proposta de suborno. Tudo acertado, o garoto saiu sem nem sequer ser fichado. Mais uma vitória para o crime. Pai, mãe, filho e delegado ajudaram a movimentar essa máquina gigantesca de impunidade e corrupção que nunca para de girar.

Libertam-se garotos por centenas ou milhares de reais, libertam-se Joesleys e Wesleys por milhões ou bilhões; ninguém precisa temer a cadeia. Políticos são condenados e a única punição que recebem é perder temporariamente seus mandatos, quando muito. A Receita Federal é capaz de multar uma senhora que esqueceu de declarar um único recibo médico, mas não consegue rastrear ilegalidades na casa dos bilhões. Os Tribunais de Contas parecem existir apenas para “inglês ver”, e mesmo quando apontam irregularidades não há consequências mais graves para quem as cometeu. O Judiciário possibilita tantas apelações e recursos que os casos com trânsito em julgado são uma raridade. Presidiários saem de suas celas para passar o dia das mães e o Natal em casa, podem se satisfazer sexualmente nas visitas íntimas, e raramente cumprem a pena toda. Mesmo assassinos cruéis, como Suzane von Richthofen, ganham liberdade após poucos anos de encarceramento.

A pergunta de um milhão de dólares é: há solução para o Brasil? É claro que… (para ler o restante deste artigo, clique aqui).

Os cavaleiros do Trumpocalipse

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 18 de maio de 2017.

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Está em curso, nos Estados Unidos, um ataque sem precedentes ao presidente da nação. Quatro cavaleiros do apocalipse trumpista juntaram forças para tentar dar um fim ao seu mandato: os democratas, a mídia esquerdista, o Estado ocupado e a banda podre do Partido Republicano. Todos têm lançado mão de estratagemas desleais e frequentemente ilegais para destruir Donald Trump.

Os democratas ainda não conseguiram assimilar a derrota eleitoral gigantesca que sofreram. O partido perdeu quase tudo o que disputou nos últimos anos: no Senado, caíram de 55 para 46 cadeiras, perdendo a maioria; no Congresso, caíram vertiginosamente de 256 para 194 cadeiras, também perdendo a maioria; nos governos estaduais, caíram de 28 para 16 estados, menos de um terço da federação; nas assembleias legislativas estaduais, perderam 958 cadeiras em todo o país; e, no Executivo, perderam a presidência. Diante de tantas derrotas, o partido tem se mostrado atordoado e incapaz de reagir com equilíbrio. Parece bastante óbvio que o povo americano não tem respondido positivamente às propostas e à ideologia de seus políticos; mas, como a grande maioria dos partidos de esquerda, os democratas optaram por jogar o jogo mais sujo possível, dar uma banana ao povo e tentar voltar ao poder por vias escusas.

Sobre a mídia americana há pouco a se dizer. Com exceção da Fox News e de alguns poucos jornais, o que se vê desde o primeiro dia em que Donald Trump anunciou que disputaria a indicação republicana são ataques de todos os tipos, quase sempre através de notícias fabricadas – as famosas fake news – e com uma parcialidade jamais vista desde que Gutenberg imprimiu a primeira folha em sua recém-inventada prensa móvel, quase seis séculos atrás. O bombardeio midiático é diário e inclui desde notícias falsas e manipuladas até reportagens ridículas, como fez recentemente a CNN, informando que o presidente Donald Trump tinha recebido duas bolas de sorvete enquanto o resto das pessoas em um determinado evento recebeu apenas uma. O jornalista típico de esquerda, seja nos Estados Unidos ou no Brasil, não pensa em informar ninguém; seu único objetivo é transformar a opinião das pessoas naquilo que ele acredita que é certo, por quaisquer meios que sejam necessários.

Eu chamo de Estado ocupado aquela parte do Poder Executivo que ainda é operada por gente da administração anterior. Barack Obama fez o que todo esquerdista faz no poder: aparelhou o Estado. No caso dos Estados Unidos, as consequências desse tipo de ação são potencialmente mais danosas que no Brasil, por exemplo, pois o aparelhamento se dá também em órgãos de inteligência e espionagem como a NSA, a CIA e outras 14 agências menos conhecidas. A esse corpo de inteligência e espionagem tem-se dado o nome de Deep State, aquela parte do Estado que age nos porões da nação, em grande parte das vezes sem nenhuma publicidade de seus atos. Parte do Deep State trabalha hoje contra Trump e é, sem dúvida, uma das maiores ameaças ao seu governo.

Por último, resta falar da banda podre dos republicanos. Esse pessoal lembra um pouco os tucanos brasileiros. Quando Geraldo Alckmin disputou o segundo turno com Lula, em 2006, o PSDB o abandonou numa disputa em que ele tinha reais condições de sair vitorioso, tudo por conta de rixas internas. No caso americano, os republicanos não conseguiram impedir Trump de receber a indicação e nem de vencer a eleição, mas não é por isso que desistiram de tirá-lo de lá. Fazendo uma oposição velada, desleal e covarde, gente como John McCain e Lindsey Graham tem trabalhado mais que muitos democratas para derrubar Trump.

Quais as chances do presidente contra esses cavaleiros apocalípticos? Uma de suas maiores vantagens é justamente não ter vindo da política. Trump é um bicho de hábitos pouco compreendidos por seus oponentes, acostumados a enfrentar políticos de carreira – seus semelhantes e coabitantes daquela dimensão paralela chamada Washington, DC. Além disso, o homem é um empresário e negociador hábil, e tem se cercado de conselheiros e estrategistas de primeira linha como Steve Bannon e Kellyanne Conway – tudo o que estou escrevendo aqui já deve ter sido previsto por esses dois há muito tempo. Enfim, não lhe faltam armas para vencer essa guerra interna.

Para o público brasileiro, que costuma acompanhar a política americana pelo Jornal Nacional e pela grande imprensa, pode parecer que há uma grande crise na Casa Branca e que Trump está isolado no Salão Oval, encurralado pelos sucessivos “escândalos” que a mídia vaza diariamente. A realidade, no entanto, é… (para ler o restante deste artigo, clique aqui).

Redistribuindo a pobreza

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 11 de maio de 2017.

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Qual é a melhor solução para a pobreza? Na cartilha da esquerda, a resposta é sempre igual: redistribuir renda. Só que para redistribuir algo é necessário primeiramente criar esse algo – a não ser que você redistribua uma coisa que cai do céu gratuita e livremente. O Estado nunca cria riqueza; o Estado as consome com as bocas vorazes da burocracia, da ineficiência e da ilicitude. Portanto, a criação de riqueza é função da sociedade – mais especificamente, dos empreendedores. Quanto mais riqueza for criada, mais riqueza será despejada nas interações entre indivíduos e empresas e, por conseguinte, mais riqueza chegará às mãos do cidadão comum.

Brasileiros, quando em primeira viagem aos Estados Unidos, geralmente se impressionam com as ruas bem cuidadas, com as coisas que funcionam, com a segurança, com o tamanho das lojas e dos carros, entre outras coisas imediatamente notáveis. Mas é somente depois de um certo tempo vivendo aqui que você começa a perceber diferenças mais brutais e de maior influência na vida diária das pessoas. Uma ótima maneira de se visualizar certos tipos de diferenças é comparando uma cidade dos EUA com uma de população equivalente do Brasil. Mesmo usando uma cidade da rica região do interior de São Paulo, por exemplo (dessas que costumam figurar entre as melhores cidades para se viver no Brasil), o resultado é impressionante. Pegue-se um par qualquer de cidades de 50 mil habitantes, uma no Brasil e uma nos Estados Unidos, e a quantidade de supermercados, concessionárias automotivas, lojas de material de construção, clínicas médicas, restaurantes, lanchonetes, centros comerciais, pet shops, shopping centers etc. será muito maior na cidade americana que na brasileira.

A comparação fica ainda mais fácil de se entender quando olhamos a riqueza bruta produzida em cada um dos países, medida pelo Produto Interno Bruto, o famoso PIB. O PIB do Brasil em 2016 foi de US$ 1,8 trilhão. O PIB americano passou de US$ 18,5 trilhões; ou seja, dez vezes mais riqueza produzida para uma população apenas uma vez e meia maior. O Canadá, com apenas um quinto da população brasileira, tem um PIB bem próximo ao do Brasil; ou seja, cada canadense, na média, coloca as mãos em cinco vezes mais riqueza que um brasileiro. Duas grandes cidades do mundo têm PIB quase igual ao do Brasil: Nova York e Tóquio. Ou seja, tudo o que produzimos de riqueza em um ano inteiro, no Brasil inteiro, é pouco mais que tudo o que apenas uma dessas cidades produz.

Redistribuir renda é uma grande mentira de todo regime socialista ou comunista. O caso da Venezuela de hoje é um ótimo exemplo. O país, riquíssimo em reservas de petróleo, sofre com a miséria e a fome de sua população porque os governos de Chávez e Maduro destruíram a capacidade produtiva do país. Venezuelanos têm fugido para as nações vizinhas, inclusive para o Brasil – muitos estão morando debaixo de viadutos em Manaus, aliviados por terem fugido de uma miséria que a grande maioria de nós nem sequer imagina como seja. O governo venezuelano, corrupto e inchado como a maioria dos governos da região, não consegue transformar o mar de petróleo sob seus pés em riquezas para a nação – muito pelo contrário. O final da história é sempre o mesmo em qualquer lugar onde algum tipo de socialismo foi implementado: redistribui-se somente a pobreza.

O Brasil escapou por pouco de um destino semelhante ao do vizinho quando Dilma Rousseff foi defenestrada do Palácio do Planalto. O problema é que a mentalidade da falsa redistribuição de renda continua em alta no país. Não há reformas legislativas que facilitem a vida dos empresários e de todos os que realmente produzem riquezas, não há nenhuma menção de desoneração tributária, não há iniciativas governamentais para tirar as amarras da economia brasileira. As pouquíssimas que existem, como a recente tentativa de reformar levemente a legislação trabalhista, são combatidas como se… (para ler o restante deste artigo, clique aqui).

O presidente da crise

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 4 de maio de 2017.

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Quando eu soube que Steve Bannon – estrategista-chefe da Casa Branca – carregava fortes influências do livro The Fourth Turning (ainda sem tradução para o português) em seus conselhos ao presidente Trump, entendi que seria bastante importante ler essa obra, e imediatamente me pus a fazê-lo.

O livro, escrito por William Strauss e Neil Howe, apresenta a interessante tese de que a história moderna acontece em ciclos, e que alguém bem treinado a observar o ciclo atual é capaz de antever a direção para a qual uma determinada sociedade está se movendo. Os autores falam mais especificamente da história americana, mas deixam claro que as tendências de globalização têm tornado os ciclos históricos cada vez mais abrangentes.

A obra começa com explicações sobre as diferentes percepções do tempo em diferentes épocas. No passado mais remoto, lá na Pré-História, o homem achava que o tempo era algo caótico, sem padrões ou repetições. Bastou um pouco de evolução para que a percepção mudasse para o conceito de tempo cíclico: estações, fases da lua, marés, mapas das estrelas, tudo se repetindo cíclica e infinitamente. Mais recentemente, especialmente após a chegada dos ideais iluministas, o homem adquiriu a noção equivocada de que o tempo é linear, ou seja, de que as coisas não se repetem e que cada novo dia é um novo tempo a ser criado por nós.

Os Estados Unidos da América são, desde sua criação, a nação do tempo linear. Em nenhum outro lugar do mundo essa noção foi tão incorporada por seus cidadãos, ainda que todo o mundo ocidental compartilhe grande parte desse modo de pensar. Mas, de acordo com os autores, o universo é intrinsecamente cíclico, e nosso pensamento moderno de linearidade temporal acaba criando um efeito condensador no processo de repetição da história. É mais ou menos assim: se a natureza impõe seus ciclos e nós reiteradamente os ignoramos com nossa percepção linear, esses ciclos nos serão impostos em “pacotes” mais espaçados, porém mais densos. Assim, podemos viver acreditando que estamos criando uma nova história a cada dia, mas, ao observarmos a história de uma perspectiva mais afastada, veremos que estamos nos repetindo a cada 80 a 100 anos.

A sequência do livro descreve primeiramente o conceito de saeculum, o período de vida da pessoa mais duradoura de uma geração, e os quatro períodos (ou “viradas”, que seria a tradução direta de turning) que ocorrem dentro desse tempo. Todo saeculum começa com um período de Alta, que é seguido por um período de Despertamento; em seguida vem um período de Desvendamento, e por último um período de Crise. A Crise fecha o saeculum e muda completamente o status quo da sociedade em questão. Em conjunto com os quatro períodos distintos, os autores identificam também quatro tipos de gerações, de acordo com o período em que cada uma nasceu. A análise da ocupação de posições importantes na sociedade por diferentes gerações em diferentes períodos é o ponto alto do livro, pois é justamente ela que define o caráter preditivo da obra.

A importância desse livro está justamente no fato de que Steve Bannon o leu e acredita piamente que Donald Trump será o presidente dos Estados Unidos quando o próximo período de crise chegar. A última crise terminou com a Segunda Guerra Mundial, evento que mudou completamente o mundo. Para enfrentar a próxima, Bannon buscou no modelo dos autores uma maneira de preparar o presidente dos Estados Unidos para conduzir o país de forma vencedora. Após ter lido o livro todo, posso dizer que é uma obra surpreendente. As análises são bem interessantes e até certo ponto assustadoras, no sentido de que mostram o quão repetitivos nós somos como humanidade. E, assim como o homem que está prestes a enfrentar o inverno a chegar, nossas memórias mais recentes são do último verão. A estação que se aproxima é sempre aquela que já foi há mais tempo. Exemplificando, a geração que lutou a última grande guerra faria de tudo para evitar uma próxima; a geração seguinte, que era criança durante a crise, também tem lembranças suficientes para querer evitar algo igual a todo custo; a geração seguinte, que só ouviu as histórias de seus avós, já não se preocupa tanto; e a próxima geração, já sem contato algum com aquele passado, acha que… (para ler o restante deste artigo, clique aqui).

Você se preocupa demais com o futuro?

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 27 de abril de 2017.

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Na semana passada falei sobre a dor indissociável de vida. Quero complementar aquele texto com esta breve reflexão de hoje. Na semana que vem voltarei a falar de política.

Há muito tempo, quando não havia agendas, nem telefones, nem computadores, nem sequer relógios portáteis, quando as pessoas não se comunicavam a não ser pessoalmente, quando o mundo era tão maior que o de hoje, porque as distâncias tinham de ser percorridas a pé ou a cavalo, muito tempo atrás, um homem escreveu que tudo tem seu tempo nessa vida. Uma vida inteira é uma sequência de tempos, que vão se sucedendo de uma maneira sobre a qual não temos muito controle e, muitas vezes, nem muito entendimento.

Alegria, tristeza, nascimento, morte, semeadura, colheita, abraço, distância, amor, ódio, choro, riso, criação, destruição, guerra e paz. Cada um desses momentos faz seu tempo em nossas vidas e, por mais que queiramos uns ou tentemos evitar outros, é simplesmente algo maior que nossa pequena existência. Aceitar o nosso destino é o único caminho que nos livra das culpas e dos medos. Para isso não precisamos acreditar que ele seja um destino predeterminado, nem mesmo que haja alguém desenhando nosso futuro – basta entendermos que nossa vida acontece dentro de um universo imenso, em meio a bilhões de outras pessoas e trilhões de outras galáxias. Diante de tanta grandeza, dizer que temos nosso destino em nossas mãos é tão absurdo como dizer que podemos fazer que o Sol brilhe mais forte amanhã.

Abraçar o destino que nos cabe é nossa maior missão. Só assim podemos nos alegrar com o que temos, em vez de nos revoltarmos com o que não temos. Só assim podemos entender que ter alguém que nos ama é um privilégio e uma causa de celebração, e não um evento comum que acontece a toda hora. Só assim é que não nos sentiremos compelidos a comparar nossos destinos com o de outras pessoas, e a nos medir de acordo com elas. Afinal, se a cada pessoa cabe um destino único, não há razão para se desejar o destino de outrem.

Comer com alegria, gozar a vida com quem se ama, dormir com a tranquilidade de quem não deve e ser a pessoa mais justa que se puder ser – é assim que tornamos o pequeno mundo ao nosso redor um pouco melhor. Como eu disse na semana passada, tempos difíceis fazem parte da vida, mas eles virão intercalados com tempos bons. Sempre haverá uma razão para a alegria, e sempre haverá esperança. Todos os tempos ruins que passamos nos dão a chance de crescer; o caráter de um homem é polido constantemente pelas adversidades, e a falta delas nunca fez bem a ninguém. Quem já leu meus livros vai se lembrar de quando falo que o Brasil é “amaldiçoado” por ser um lugar tão fácil de se viver.

Enfim, não sei se teremos guerras, se a humanidade vai acabar num… (para ler o restante deste artigo, clique aqui).

A dor indissociável da vida

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 20 de abril de 2017.

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O ser humano nasce sofrendo. Nosso primeiro contato com o mundo é literalmente de chorar. Depois de tantas semanas no aconchego do ventre materno, a entrada no mundo através das mãos do obstetra ou da parteira vem acompanhada de muito esforço, dor, fluidos, sangue, suor e lágrimas; e me perdoem pelo chavão. A dor da mãe, principalmente no caso de parto natural, pode se estender por horas e horas, e é suportável apenas porque existe algo maior, que muitos de nós consideram o maior bem da humanidade: a vida. Digo muitos, e não todos, porque a humanidade já assistiu à ação de lunáticos poderosos que ceifaram milhões de vidas durante sua existência. Mas, no geral, a vida é e continuará sendo o motor maior do ser humano, e a chegada de uma nova vida é um espetáculo que jamais se torna repetitivo.

Mas divaguei. Minha ideia central é a dor, o sofrimento. Ao contrário do que muitas pessoas acreditam, principalmente as mais jovens, a essência da vida não é ser feliz. Quem vive correndo atrás da felicidade – conceito, aliás, bastante subjetivo e de difícil medida – não dá conta de uma verdade absoluta, que atinge todas as pessoas deste mundo: só existem duas certezas na vida de um ser humano, a de sofrer e a de morrer. A nossa natureza má garante a presença da dor em toda a nossa história de vida – por vezes nós a infligimos a nós mesmos, por vezes aos outros. E sobre a morte não há muito o que dizer: ela é implacável e invencível.

É claro que eu não poderia continuar nesta direção sombria sem mencionar as possibilidades de alegria que nos surgem. Não é porque vivemos com a certeza da dor e da morte que não podemos viver momentos de alegria. Nossa verdadeira humanidade está em agir ativamente para melhorar nossa vida e tornar os momentos de dor e sofrimento menos frequentes e menos intensos, ainda que enfrentemos o limite inexorável do acaso (ou do destino, como alguns acreditam). Ainda assim, está em nossas mãos o poder de lidar com nossos melhores e piores momentos e usá-los para moldar o nosso caráter e desenvolver as partes altas da alma.

Gosto muito de um texto do filósofo Louis Lavelle, que diz: “Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se ilumina, que nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos o destino mesmo que nos coube, como se nós próprios o tivéssemos escolhido. Depois o universo volta a fechar-se: tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tateando por um caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo a nossos passos. A sabedoria consiste em conservar a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver, em fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito”.

Eu adoro esse texto, adoro mesmo. Já o li centenas de vezes e tento aplicá-lo no meu cotidiano, todos os dias. A consciência da falibilidade do ser humano e da necessidade de um aprimoramento pessoal é condição sine qua non para uma sociedade funcional – nenhum grupo de pessoas pode buscar justiça, paz, harmonia ou qualquer outro valor desejável sem que seus indivíduos realizem esta busca primeiramente por si mesmos, antes de qualquer tentativa de coletivização. E é neste ponto que colidimos com a ideologia de esquerda, sem nenhuma possibilidade de acordo ou nem sequer de respeito às suas ideias, que trouxeram as maiores desgraças à humanidade.

Desde que Rousseau removeu a responsabilidade individual pelos males praticados, estabelecendo que o homem nasce bom e culpando a sociedade pela degradação moral do indivíduo, os intelectuais de esquerda não fizeram nada além de aprofundar essa mentira e levá-la às piores consequências. Ao negar que o estado natural do homem é a miséria e que a dor é indissociável da vida, eles propuseram soluções absurdas, baseadas em problemas que não existem. Assim, para explicar o sofrimento propuseram a luta de classes, como se todo o sofrimento humano viesse somente da diferença de riqueza entre as pessoas. Fosse assim, os ricos seriam os mais felizes do mundo e os milionários acumulariam rugas de tanto rir; e os pobres se matariam de desgosto, amargurados até os ossos por não possuírem uma casa mais bonita ou um relógio de ouro. Para combater a dor e o sofrimento, propuseram sistemas de governo paternalistas, que tratam todos como crianças incapazes, prometendo algo que nenhuma pessoa na história da humanidade conseguiu prover a alguém: felicidade. Assumiram, assim, o monopólio da virtude, a ponto de serem os verdadeiros arautos da bondade e, enquanto o faziam, assassinaram civilizações inteiras. Pagaram a fé dos incautos com a morte e suas promessas de felicidade terminaram enterradas em valas comuns, junto aos corpos carregados de marcas de tortura e sofrimento. Essa é a história do comunismo, do socialismo, do nazismo e de todos os movimentos de esquerda que assolaram o mundo.

Tire de uma pessoa a certeza da dor, prometa-lhe felicidade, e ela não terá mais instrumentos para evoluir. Confronte uma pessoa com a inexorabilidade da dor, desafie-a… (para ler o restante deste artigo, clique aqui).

Sem muletas, por favor

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 13 de abril de 2017.

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Quando participo de hangouts e entrevistas por ter escrito um livro sobre a questão do desarmamento, uma das perguntas que surgem com mais frequência é se a revogação do Estatuto do Desarmamento será suficiente para devolver aos brasileiros o direito básico de se defenderem. Minha resposta é sempre a mesma: não. O Brasil de hoje é como um paciente com as duas pernas fraturadas; a cura de uma só delas não o fará andar sem a ajuda de muletas.

O arcabouço legal que rege os processos penais não dá suporte algum ao cidadão que precisar se defender de um criminoso. Mesmo que tenha uma arma de fogo registrada e legalizada em casa, o proprietário que der o azar de ter sua residência invadida por um ladrão terá de enfrentar uma maratona jurídica incansável caso chegue a disparar contra o criminoso. Há inúmeros relatos de pessoas que agiram assim e acabaram julgadas e condenadas injustamente por homicídio, mesmo agindo em legítima defesa e sob as circunstâncias mais extremas de perigo. Mesmo quando não chegam a ser condenadas, por vezes têm de vender imóveis e automóveis para pagar as muitas despesas decorrentes de um processo por homicídio. Em resumo, acaba-se com a vida do sujeito que nada fez além de tentar se manter vivo.

E como transformar esse tipo de realidade? Um ótimo exemplo de legislatura em favor do direito de defesa aconteceu aqui na Flórida, na semana passada. Em um único dia, 5 de abril, cinco novas leis a favor do cidadão de bem foram aprovadas pela Câmara Legislativa e seguirão para o Senado estadual para aprovação final. São elas:

HB-849 (Armas de fogo ocultas em propriedade religiosa): restaura o direito de propriedade privada a igrejas, sinagogas e outras instituições religiosas. Esta lei foi criada para remediar uma outra lei, a que proíbe a posse de armas em escolas, e que incluía igrejas pelo fato de muitas delas possuírem creches ou escolas dentro de seus terrenos. A lei foi aprovada por 76 votos a favor; 35 votaram contra.

HB-779 (Proteção para o cidadão com licença de porte oculto): descriminaliza a exposição temporária e acidental de arma por cidadãos que tenham a licença para porte oculto. Sem esta lei, uma pessoa que mostrasse acidentalmente sua arma poderia ser presa e processada, mesmo que a arma fosse exposta por uma simples barra de camisa involuntariamente erguida. A lei foi aprovada por 80 votos a favor; 34 votaram contra.

SB-128 (Ônus da prova): restaura a presunção de legítima defesa e coloca o ônus da prova de volta nas mãos do Estado, de onde nunca deveria ter saído. Antes de sua votação, a lei foi emendada de forma que o nível da prova de que houve legítima defesa fosse baixado de “absolutamente sem dúvida alguma” para “claro e convincente”. A lei foi aprovada por 74 votos a favor; 39 votaram contra.

HB-965 (Imposto sobre o serviço de coleta de digitais): proíbe a Secretaria de Finanças da Flórida de cobrar quaisquer tipos de impostos ou taxas sobre os serviços de coleta de digitais mandatórios para quem deseja obter uma licença de porte oculto. A lei foi aprovada por 106 votos a favor; oito votaram contra.

HB-467 (Taxas de licença da Secretaria de Agricultura): ordena a redução das taxas de licença oculta de armas de fogo de US$ 60 para US$ 50 no período inicial de sete anos, e de US$ 50 para US$ 45 na renovação. A lei foi aprovada por 117 votos a favor; ninguém votou contra.

É assim que se eliminam as barreiras que impedem um povo de se defender, removendo o ônus jurídico e financeiro do cidadão de bem. Os esforços para revogar o Estatuto do Desarmamento são extremamente necessários e louváveis, pois sem essa revogação os brasileiros nem sequer poderão ter acesso a uma arma para defesa própria. No entanto, esse é apenas o primeiro passo de muitos. Outras leis precisam ser mudadas, juntamente com a cabeça de vários juízes e promotores – muitos deles parecem compartilhar do mesmo amor pelos criminosos que a esquerda costuma pregar. Precisamos nos tornar um país de adultos, onde as pessoas que escolhem o crime paguem por isso, e as que são alvejadas por esses criminosos tenham o direito de entregar esse pagamento em forma de munição em alta velocidade. Que fique claro: não estou vomitando chavões do tipo “bandido bom é bandido morto”; estou afirmando o direito básico de um ser humano de… (para ler o restante deste artigo, clique aqui).

Entre insights e catimbas

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 6 de abril de 2017.

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Existe uma palavra na língua inglesa que não tem uma tradução perfeita para o português. É a palavra insight. Se você perguntar ao Google Tradutor, ele responderá com as opções “discernimento”, “introspecção”, “compreensão” e “perspicácia”. O Michaelis também aposta em “discernimento” como a melhor tradução. Mas nenhuma dessas opções comunica com perfeição o real sentido da palavra: uma compreensão clara, profunda e por vezes repentina de um determinado problema ou situação, nas palavras do Dicionário Cambridge da língua inglesa.

O maior insight que a esquerda já teve em sua história foi entender que a Suprema Corte de um país com regras democráticas é o caminho mais direto para a consolidação legal de novos paradigmas ideológicos em uma sociedade, independentemente de esses paradigmas estarem consolidados de fato nas interações humanas entre aqueles que vivem sob esse mesmo aparato de leis. Em outras palavras, ainda que não seja majoritariamente aceito pelo povo, um determinado argumento ideológico torna-se norma legal através da caneta de meia dúzia de togados.

Daí o motivo de as esquerdas darem tanta importância à ocupação de espaços nessas cortes. Em alguns lugares, como na Venezuela, o processo avançou a ponto de a corte mais alta do país não passar de um mero apêndice de um Poder Executivo autoritário e despótico. Em outros, como no Brasil, a corte apresenta uma maioria clara e consistente de juízes ideologicamente alinhados à esquerda, mas que conservam um nível de independência em relação ao Executivo. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte historicamente alterna momentos mais conservadores com momentos mais liberais – não confundir aqui o liberalismo político americano, que nada mais é do que a esquerda neste país, com o liberalismo econômico –, e se encontra atualmente num movimento em direção ao conservadorismo.

A mais alta corte americana é composta de nove juízes, bastando a presença de seis deles para que haja quórum. Até o início de 2016, cinco deles tinham sido apontados por presidentes republicanos – dois por Reagan, um por Bush pai e dois por Bush filho – e quatro, por presidentes democratas – dois por Clinton e dois por Obama. O fato de um juiz ser indicado por um presidente republicano ou democrata diz muito a seu respeito. Por exemplo, nas votações com respeito a direitos de minorias, uma pauta ideológica clássica da esquerda, juízes “republicanos” votam a favor da manutenção dos direitos individuais, enquanto juízes “democratas” votam a favor da intervenção do Estado em favor de grupos minoritários. O mesmo acontece quando o assunto é sindicalismo ou liberdade de expressão. Para melhor ilustrar esse abismo entre os juízes, deixo os números a seguir, todos calculados com base nas votações dos juízes atuais:

Quando o tema é ligado a direitos de minorias, “republicanos” votam em média 35% das vezes em favor das minorias e 65% em favor do indivíduo. “Democratas” votam em média 66% das vezes em favor das minorias e 34% em favor do indivíduo. Se o assunto é sindicalismo, “republicanos” votam em média 41% das vezes em favor dos sindicatos e 59% em favor do empregador. “Democratas” votam em média 81% das vezes em favor dos sindicatos e 19% em favor do empregador. Em julgamentos sobre liberdade de expressão, “republicanos” votam em média 68% das vezes em favor da liberdade de expressão e 32% em favor de alguma restrição a ela. “Democratas” votam em média 35% das vezes em favor da liberdade de expressão e 65% em favor de alguma restrição.

Quando Donald Trump indicou Neil Gorsuch para o lugar de Antonin Scalia, todos os democratas americanos tremeram e temeram. Em termos de ideologia política, Gorsuch é tão conservador quanto o mais conservador dos juízes atuais, Clarence Thomas. Sua idade – completará 50 anos em agosto deste ano – lhe permitirá julgar por mais três décadas, equivalentes a oito mandatos presidenciais, se permanecer na média atual da corte. Diante de uma derrota tão avassaladora, os senadores democratas decidiram usar uma técnica bem conhecida nos campos de futebol de nosso Brasil: a catimba.

Usando da prerrogativa de que um senador tem direito a expor suas considerações antes do voto a favor ou contra uma indicação para a Suprema Corte, os senadores democratas têm se revezado na maior procrastinação legislativa da história da América. Na última terça-feira houve até quebra de recorde. Jeff Merkeley, senador pelo estado do Oregon, fez um discurso com duração de mais de 15 horas, começando sua fala às 19 horas da terça-feira já com o aviso de que “falaria tanto quanto conseguisse”. Em resposta a toda a catimba democrata, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, disse que não hesitará em mudar o regimento interno para permitir a aprovação de Gorsuch com uma maioria simples, manobra conhecida como “opção nuclear”. No entanto, caso isso aconteça, as regras ficarão alteradas para as próximas eventuais nomeações sob o governo Trump, assumindo que os republicanos manterão a maioria no Senado durante seu governo. Ou seja, no caso provável de mais um juiz atual abotoar o paletó de madeira ou se aposentar, Trump nomeará o juiz que realmente desequilibrará a corte a favor dos conservadores, e valerá a regra da maioria mínima.

Assim, os democratas estão com um pepino gigantesco nas mãos. Neil Gorsuch é altamente respeitado, inclusive por alguns políticos democratas. Não bastasse isso, senadores de estados em que Trump saiu vencedor – Joe Manchin (Virgínia Ocidental), Heidi Heitkamp (Dakota do Norte) e Joe Donnelly (Indiana) – já declararam que votarão pela aprovação do novo juiz a fim de agradar seu eleitorado. Se, mesmo assim, a minoria democrata no Senado decidir por obstruir esta indicação, gastará a única bala que têm com um homem que foi aprovado por unanimidade para sua posição atual na corte de apelação, e abrirá caminho para que Trump escolha alguém ainda mais conservador na próxima oportunidade.

Vale lembrar que os democratas mudaram a regra da supermaioria para indicações de juízes de instâncias inferiores e, quando o fizeram, tiveram de ouvir do próprio McConnell que aquilo os morderia no calcanhar antes mesmo que eles esperassem. Suas palavras podem se tornar proféticas muito em breve.

Flavio Quintela é escritor, jornalista e tradutor. É autor dos livros “Mentiram (e muito) para mim” e “Mentiram para mim sobre o desarmamento”.

DNA brazuca

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 30 de março de 2017.

sushi

O dia é quarta-feira. Entro num restaurante italiano próximo ao meu escritório. O restaurante faz parte de uma rede e tem algumas lojas na região. Sento-me com minha esposa após sermos muito bem recebidos pela hostess. O lugar é bem arrumado, mas não é chique ou requintado. Na verdade, uma placa na entrada anuncia alguns especiais de almoço por US$ 7, uma pechincha para a realidade local. Após estudarmos o cardápio, ela resolve pedir um torteloni de abóbora com pancetta, e eu decido por um fettuccine com molho de camarão.

Chegados os pratos, dou aquela garfada matrimonial no prato de minha esposa e descubro que ela fez uma escolha muito melhor que a minha. A garçonete passa por nossa mesa dois minutos depois e pergunta se gostamos da comida. Segue-se o diálogo:

“Gostamos, sim. Na verdade, eu gostei bem mais do que ela pediu que do meu prato.”

“Senhor, eu posso trocar o seu prato por um igual ao dela.”

“Sério? Puxa, obrigado, mas não precisa, não.”

“Não quero que saia daqui sem que sua experiência tenha sido a melhor possível. Será um prazer trazer um torteloni para o senhor.”

“Tudo bem, então. Aceito a cortesia.”

Após me deliciar com aquele torteloni cheio de pancetta, saio do restaurante ainda sem acreditar que aquilo tinha acontecido. Estávamos em nossos primeiros meses na América, e mal sabíamos que aquilo aconteceria com frequência em diversos outros lugares. Estávamos descobrindo a beleza de ser cliente numa terra em que cliente é rei.

O dia agora é domingo. A descoberta de que um novo restaurante japonês com DNA brazuca abriu na região nos leva a marcar o almoço de domingo num lugarzinho bastante descolado e muito bem frequentado na cidade vizinha à nossa. O local lembra um micromercado municipal, com uma cervejaria, uma padaria francesa, um café, um açougue mais sofisticado, uma barraca de sucos e lanches naturais, uma chocolateria e uma casa de chá. E ali, no meio de todo esse pessoal gringo, um japonês quase que 100% brasileiro. Dono brasileiro, atendente brasileiro e sushiman brasileiro. Não fosse o cardápio em inglês, poderíamos nos imaginar comendo sushi no Brasil.

Após analisarmos as opções, fazemos o pedido: ceviche e sushis variados, com uma única ressalva: tirar o cream cheese do hot roll porque nosso amigo Eduardo, fresco, não gosta. Com o pedido anotado e pago – o preço, mesmo sendo um restaurante sem serviço de mesa, já deixou todos menos entusiasmados e de carteiras vazias –, seguimos para uma das mesas do mercado e aguardamos a mensagem de texto no celular avisando que os pratos estão prontos para serem retirados. Quase meia hora depois, chega a mensagem. Vou até o balcão, pego os pratos com a ajuda do meu amigo e voltamos à mesa. Provo o ceviche e tenho a impressão de estar comendo limonada de peixe. Eduardo vai com voracidade para cima do hot roll e descobre que está cheio de cream cheese. Voltamos ao balcão, eu imaginando que seria tratado como daquela vez no italiano. Segue-se o diálogo:

“Amigo, o ceviche só tem gosto de limão.”

“É a nossa receita, senhor.”

“Eu não gostei. É possível trocar por alguma outra entrada?”

“Não, senhor. Não posso trocar por outra coisa, a não ser que queira comprar um novo prato.”

“Certo. Deixa pra lá. Outra coisa: pedimos o hot roll sem cream cheese e vocês colocaram cream cheese.”

“Vamos fazer outro. Por favor, me entregue o que veio errado.”

Dois hot rolls com cream cheese depois e completamente insatisfeitos com o serviço, saímos dali para nunca mais voltarmos.

Há um ditado entre os brasileiros imigrantes que explica muito bem a diferença entre os dois casos que contei: tem brasileiro que sai do Brasil, mas não deixa o Brasil sair dele. Em vez de enriquecer a cultura local com as boas características de um brasileiro – simpatia, calor humano, versatilidade, adaptatividade etc. –, o sujeito traz as práticas ruins que tinha em sua terra natal. Fazendo isso, cancela a maior vantagem da imigração, a sinergia de culturas. Entendo que algumas práticas comerciais comuns aqui nos Estados Unidos sejam impraticáveis no Brasil, pois os clientes simplesmente abusariam delas. Dou um exemplo: muitos restaurantes daqui deixam copos menores ao lado das máquinas de refrigerante, para que o cliente possa beber água sem pagar. Ninguém fica fiscalizando para ver se você pegou água ou Sprite, mas as pessoas respeitam e pegam somente água (pelo menos a grande maioria delas). Consegue imaginar isso no Brasil? Agora, se você se dispôs a abrir um negócio em terras estrangeiras, seria pedir muito que os bons costumes locais sejam seguidos?

A mentalidade gersoniana ainda tem muita influência na vida diária de muitos brasileiros. Quem tenta levar vantagem em tudo não consegue enxergar a vida como uma oportunidade de exercer a generosidade. Nem as boas ideias que atravessam o Mar do Caribe (aquele que Lula chamou de Atlântico) são mantidas boas – vide os motoristas de Uber do Brasil, que desligam os aparelhos para gerar falsa demanda e alta no preço das corridas. Somos peritos em deteriorar coisas boas com a nossa malandragem. É por isso que sempre seremos o país de um futuro que nunca chega.

Flavio Quintela é escritor, jornalista e tradutor. É autor dos livros “Mentiram (e muito) para mim” e “Mentiram para mim sobre o desarmamento”.

Notificados Anônimos

Artigo publicado na Gazeta do Povo de Curitiba, seção Opinião, coluna Flavio Quintela, em 23 de março de 2017.

Durante grande parte de minha vida, a palavra “notificação” sempre trouxe uma sensação de problema. É impossível não pensar em encrenca ou em dor de cabeça quando se recebe uma notificação judicial ou uma notificação da Receita Federal. Afinal, ninguém é notificado por ter sido um funcionário ou um patrão exemplar ou por ter pago os impostos em dia.

Já atualmente, notificação passou a significar aquela bolinha vermelha nos aplicativos do celular. Se antes era temida, agora passou a ser parte do cotidiano das pessoas. E todo aplicativo quer ter o direito de nos notificar; tanto que, na hora de instalá-los, geralmente somos indagados se queremos ligar as notificações, e a maioria de nós aperta o “sim” de forma quase automática.

De aplicativo em aplicativo, o celular é dominado, e com ele a vida de seu hospedeiro. A tela acende e você vê, mesmo de longe, que chegou um novo e-mail. Ou que alguém comentou seu post no Facebook. Ou que fulano, Sicrano e Beltrano retuitaram a mesma coisa. Ou que seu irmão mandou um vídeo no WhatsApp. Ou que acabou de cair um débito automático na conta bancária. Ou que um amigo curtiu sua foto no Instagram. Ou que seu cartão de crédito ultrapassou o limite pré-estabelecido de gastos no mês. Ou que um dos restaurantes em que você costuma comer está com uma promoção. Ou que a zona quatro do seu alarme disparou. Ou que, ou que, ou que. A lista é quase infinita.

Dois dias atrás, estava conversando com um amigo; ele é cristão, como eu. Estava lhe perguntando se ele já havia passado por aqueles momentos em que parece que Deus se cala por completo. Sua ótima resposta: “já passei, sim, várias vezes, até aprender que era eu que estava fazendo muito barulho para ouvir”. Parece até aquelas frases de autoajuda, mas esse fenômeno é bem real e intimamente ligado à nossa constante inquietação produzida pela carga de notificações à qual somos submetidos. Como muitas pessoas dormem com o celular carregando sobre o criado-mudo, esse frenesi eletrônico não para nem durante a madrugada.

O momento em que conversamos com Deus, em que ouvimos Sua voz, é também o momento em que olhamos para dentro de nós mesmos e fazemos uma reflexão de nossos erros e acertos, de nossos vícios e virtudes. É o momento em que reavaliamos o dia que passou e planejamos o que em breve começará. É como a canção de Gilberto Gil: “Se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz”. Na era das notificações e das redes sociais, nosso grande desafio é perceber que algumas conexões impedem outras; e, sabendo disso, conseguir escolher a conexão certa na hora certa. A constatação mais comum, no entanto, é que muitos têm fracassado nessa questão. Você entra em um restaurante, passa os olhos pelas mesas e vê alguns casais de hospedeiros dando total atenção aos seus smartphones parasitas; ou mesmo pais totalmente absortos em suas telinhas enquanto seus filhos os observam sem saber o que fazer (isso quando não estão eles mesmos já com os seus). E o que dizer daquele amigo que não tira os olhos das notificações que pipocam a cada 20 segundos na tela do celular, ao mesmo tempo em que participa de forma meio zumbi da conversa que está acontecendo ao vivo?

Em que momento passamos a entender que aquilo que acontece a quilômetros de distância tem prioridade sobre o que está acontecendo diante de nossos olhos? Eu escrevo estas linhas na condição de alguém em recuperação de um vício. Não consegui achar um Notificados Anônimos para frequentar, mas alguns textos que andei lendo e algumas conversas que tive com minha esposa levantaram bandeiras de sinalização em meu dia a dia. Antes de começar a escrever este artigo, já tinha desligado quase todas as notificações em meu celular. Ficaram apenas as do telefone, das mensagens de texto e dos aplicativos de companhias aéreas. Também tenho cultivado o hábito de só abrir algum aplicativo de e-mail ou rede social depois de ter acordado, meditado, dado bom dia à minha esposa e ter tomado café da manhã com ela e com nosso filhinho. O resultado, depois de duas semanas agindo dessa maneira, é muito positivo: não deixei de atender nenhum cliente, não perdi nenhuma comunicação importante, o apocalipse digital não aconteceu em minha casa e absolutamente ninguém foi prejudicado por causa disso. Afinal, o mundo funcionava perfeitamente antes dos e-mails e dos celulares e, por incrível que pareça, havia vida antes de existirem Google e GPS. As pessoas tiravam extrato bancário no caixa eletrônico, mandavam cartas, pesquisavam em bibliotecas, guiavam-se com mapas impressos e conversavam mais com a boca que com os dedos. E pasmem: elas tinham mais tempo de sobra, ainda que todas as suas interações fossem muito mais demoradas que as que temos hoje em dia.

Conectividade pode ser algo muito bom, mas se transforma em veneno quando a dose é alta demais. E não é difícil exagerar, porque muita gente ao redor está agindo da mesma forma, dando a impressão de que não há nada de errado com isso. Quando na dúvida sobre estar exagerando ou não, sugiro um pequeno teste: se você preferir olhar uma tela a um par de olhos, não é bom sinal. Desnotifique-se o quanto antes e abandone a vida de zumbi digital. Sua família e amigos agradecem.

Flavio Quintela é escritor, jornalista e tradutor. É autor dos livros “Mentiram (e muito) para mim” e “Mentiram para mim sobre o desarmamento”.